Cascais pioneiro na atribuição de casas a pessoas em situação de sem-abrigo

Desde 2010, a Câmara Municipal de Cascais distribuiu 51 casas de habitação municipal a pessoas que se encontravam em situação de sem abrigo. A autarquia foi pioneira no país, ao incluir este público alvo no regulamento de acesso à habitação municipal.

A atribuição de uma casa com um contrato de arrendamento, em nome da pessoa que antes estava sem abrigo, é o culminar de um longo processo de intervenção, que só é possível porque é realizado em parceria. Desde 2010 que, no concelho, são mobilizados recursos e instituições para introduzir mudanças reais na vida destas pessoas, ao abrigo do Plano Concelhio Para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo.

Para além do município, estão envolvidas nesta missão as Juntas de Freguesia, as IPSS´S, o Hospital de Cascais, o ACES Cascais, as forças de segurança e Tribunal. Como explica Teresa Casaleiro, Coordenadora do NPISA, “só assim se consegue uma abordagem abrangente a um problema social complexo, indo ao encontro das características e das fragilidades que as pessoas apresentam quando estão na rua.”

Os motivos que levam as pessoas a ficarem na condição de sem-abrigo são frequentemente de origem familiar ou de saúde mental. E quanto mais tempo uma pessoa permanecer sem-abrigo, menor será a sua possibilidade de reintegração. As competências sociais vão diminuindo, a saúde física e mental começa a degradar-se rapidamente e a capacidade de arranjar emprego torne-se cada vez menor. Um quadro que, a longo prazo, pode ter consequências irreversíveis.

Uma história bem sucedida

No entanto a experiência mostra que uma intervenção adequada pode mudar os rumos destas vidas. Foi o que se passou com Rui Bica Santos que em tempos esteve em situação de sem abrigo. Cresceu em Cascais, no Bairro do Rosário, onde tinha os seus amigos e, por circunstâncias familiares e de desemprego, viu-se a dormir na rua o que, explica, pode acontecer a qualquer pessoa: “eu tinha família e os meus irmãos não me ajudaram. Se os sem-abrigo estão na rua é porque alguma coisa aconteceu. Eu não estava à espera e fui para a rua na mesma”. “O meu irmão pôs-me na rua. A minha mãe morreu em 2004 e estive na rua até 2010. Eu não tinha trabalho. Apanhei aquele trauma. Não sou alcoólico, não fumo droga. Fui viver para o meio do mato depois de não poder pagar o quarto onde vivia.”

O Rui foi uma das pessoas que, nos últimos anos, encontrou uma ajuda decisiva no NPISA, deixou a rua e hoje é funcionário do Clube Gaivotas da Torre, onde ajuda outras pessoas com histórias semelhantes à sua a saírem da rua. Trabalha diretamente com os técnicos e, o facto de ter passado pela mesma experiência, torna-o num elemento da equipa fundamental para estabelecer os primeiros contatos com as pessoas que estão na rua, quando estas têm medo e desconfiam das intenções das instituições que lhes propõem ajuda.

“A vida de sem-abrigo é terrível”, conta, “é muito duro estar na rua. Apanhas frio, andas a comer nos caixotes do lixo”. Era expulso com frequência dos sítios onde pernoitava e assim foi perdendo os laços com a sociedade e a confiança nos outros “Com uma pessoa à frente de nós, não sabemos se aquela pessoa vai ajudar ou não. Pode ser para bater. Isso acontece, baterem nos sem-abrigo”. Hoje diz que gosta muito do que faz: “Temos que dar amor e carinho, se não houvesse as instituições a vida dos sem-abrigo era terrível. Aquilo que passei, não quero que passem os outros também. A minha sensação é a deles, é igual”.

Passar de voluntário a membro da equipa, com um contrato de trabalho, foi a concretização de um sonho e também o reconhecimento do seu empenho no trabalho de rua.

Quando toda a ajuda é rejeitada

Um trabalho que pode levar muito tempo a ter resultados visíveis o que faz com que por vezes, entre o público, haja a perceção de que não há uma ajuda efetiva às pessoas em situação de sem abrigo ou até, refere Teresa Casaleiro, se pense que “estas pessoas estão na rua porque querem”. Mas quem conhece o terreno sabe que é outra a realidade. Esta responsável explica que o isolamento da pessoa em situação de sem-abrigo pode ser tão grave, que leva à rejeição de qualquer tipo de apoio. Quando estas pessoas “recusam intervenção, é porque não estão sequer com capacidade de perspetivar este processo como uma coisa positiva. Só as pessoas aceitarem qualquer tipo de intervenção demora muito tempo.”

Soluções diversas para casos muito diferentes, mas sempre “à medida” de cada um

A situação de sem abrigo, pode passar por contextos muito diferentes: acomodação, temporária ou transitória em centros de alojamento de emergência, alojamento temporário em casa de amigos ou familiares, pessoas obrigadas a abandonar instituições e que não têm alojamento, pessoas ameaçadas de despejo ou que vivem num alojamento inadequado ou pouco seguro. E cada história, precisa de uma atenção particular.

Mafalda Palmares, psicóloga clinica e coordenadora da Área de Ação Social das Gaivotas da Torre, entidade gestora do Programa de Alojamento à Medida, explica que esta diversidade “Em termos de intervenção, exige muita flexibilidade da parte técnica. Temos que fazer um esforço para nos colocarmos na posição do Outro. Um Outro muito frágil, muito vulnerável e que já teve uma série de sistemas que foram falindo ao longo da vida. Tiveram vidas muito dolorosas e não têm nada, nem ninguém.”

O programa tem como filosofia de base a intervenção com a pessoa em condição de sem-abrigo de uma forma individualizada e é inspirada na metodologia “housing first”. Mafalda Palmares conta que “o que se pretende é que a pessoa tenha acesso a uma habitação no seu local de referência, junto das instituições com quem já ganhou alguma proximidade, do comércio ou da vizinhança que costuma frequentar. Nada é feito sem a aceitação da pessoa em situação de sem-abrigo, a quem agora é dada a possibilidade de se adaptar a uma nova realidade, a novas rotinas que se perderam com os anos vividos na rua”.

E, muitas vezes, esta adaptação é um processo que demora tempo. De acordo com Teresa Casaleiro, muitas destas pessoas, quando chegam a uma casa, ”não conseguem dormir numa cama” e as que estão em pior condição na rua, com maior número de problemáticas, não poderiam suportar os custos inerentes a uma habitação.

A maior parte das pessoas a quem é atribuída uma casa nestes contextos não tem quaisquer rendimentos pelo que, para sua proteção, a casa é atribuída a uma entidade gestora, com quem o beneficiário assina um contrato social. Esta intermediação previne situações de incumprimento por parte destas pessoas que, ainda numa situação de grande fragilidade, se abrem desta forma à possibilidade de começar uma nova vida.

Um balanço positivo, entre percursos a várias velocidades

O PAM dispõe de 7 habitações, 3 privadas e 4 municipais, que estão sob responsabilidade da entidade gestora que presta apoio psicossocial. Mafalda Palmares refere que tem havido algumas ”experiências menos positivas” mas há também “casos de pessoas que entram muito desorganizadas por estarem há muitos anos na rua e que conseguem fazer percursos muito interessante, adquirindo algum grau de autonomia”, embora frequentemente continuem a ficar ainda com alguma dependência dos sistemas de apoio.

E há ainda os casos de pessoas que estiveram em situação de sem-abrigo, que conseguem voltar a ter nas mãos os rumos das suas vidas e que passam a ser os titulares dos seus contratos de arrendamento e a usufruir de uma integração social plena. Foi o que aconteceu ao Rui Bica Santos, do Clube das Gaivotas da Torre.

As respostas em Cascais

A existência de uma rede de parceiros permite diferenciar os tipos de resposta, como a Casa Esperança, do Centro Comunitário da paróquia de Carcavelos, que é uma residência de passagem para pessoas em situação de sem abrigo. Este alojamento temporário destina-se a pessoas que ficaram sem-abrigo há pouco tempo. Durante a sua permanência nesta casa, é delineada uma estratégia de intervenção para definir o projeto de vida de cada um.

Mas existem também respostas de acolhimento diurno para quem está na rua, onde não é possível pernoitar mas se pode passar o dia, com acesso a alimentação, higiene e apoio psicossocial. É o caso do Centro Porta Amiga de Cascais (AMI), da SER+ e do projeto Esperança de Recomeçar, do CCP Carcavelos ou o CASA, que fornece uma refeição quente à noite.

Outra estrutura importante é o Centro de Respostas Integradas (CRI) Eixo Oeiras/ Cascais: Equipas de Tratamento da Parede e de Alcabideche, cuja missão é promover a redução do consumo de substâncias psicoativas, a prevenção dos comportamentos aditivos e a diminuição das dependências, que muitas pessoas que vivem na rua apresentam.

Atualmente existem sinalizadas cerca de 130 pessoas em situação de sem-abrigo no concelho de Cascais.

Saiba mais sobre todos os apoios disponíveis em:
Programa de Alojamento à Medida https://youtu.be/nHyhBHdnYts

2 de Agosto de 2019
Isabel Ganilho