Estudos internacionais mostram que os comportamentos aditivos e consumos de substâncias psicoativas aumentaram durante a pandemia. A Rede Social de Cascais disponibiliza um conjunto de recursos para ajudar quem se encontra nesta situação. Conheça a história de Manuel (nome fictício para proteger a identidade) que conta as primeiras experiências que teve com consumos até chegar ao tratamento em comunidade terapêutica n’ A Barragem.
REDE SOCIAL- Como começaram os problemas com as dependências de substâncias?
MANUEL– Eu comecei por consumir álcool com uma idade muito jovem. Nós temos tendência a desvalorizar o consumo do álcool no entanto, foi a primeira substância com que tive contacto. Comecei a sair à noite desde muito cedo e comecei a beber álcool desde muito cedo. Bebia de uma forma lúdica e recreativa, numa ótica meramente social, só mais tarde, com 16, 17 anos de idade, é que experimentei haxixe. Foi a primeira droga que eu experimentei. Com 19 anos comecei a consumir ecstasy. Sempre de uma forma recreativa: saía à noite, consumia de forma esporádica. Até se tornar uma adição desconcertante na minha vida, ainda levou algum tempo. Fui sempre funcional, trabalhei sempre desde os 21 anos, tive funções de responsabilidade, na área financeira. E foi antes de entrar para esse trabalho que eu conheci a cocaína e o esctasy. Consumia aos fins de semana, em festa, em socialização, com amigos.
REDE SOCIAL- Quando é que sentiu que precisava de ajuda?
MANUEL– Comecei por perceber que tinha um problema porque quando estava em consumos com pessoas e quando chegava à hora das pessoas dizerem já chega, eu não tinha esse travão. Portanto, eu sabia que tinha alguma coisa diferente das outras pessoas. Isso só me começou a acontecer após algumas experiências sentimentais, de abandono, algumas experiências traumáticas. Só aí é que eu comecei a ter esse descontrole. Basicamente, os últimos quatro anos em que consumi foram muito pesados. Eu tenho 38 anos. Acordava de manhã a pensar em consumir, deitava-me a pensar em consumir e andava em piloto automático completo para o consumo. Deixei de trabalhar, sobrecarreguei a nível financeiro a minha família. Durante muito tempo manipulava a minha mãe, a minha irmã para me darem dinheiro. Dizia que era para ir jantar, tentava sempre dar desculpas para aquilo que era o objetivo final que era o consumo.
REDE SOCIAL- Alguém percebeu que consumia?
MANUEL-A minha irmã apercebeu-se disto e teve uma conversa franca comigo. Cheguei a estar nos Narcóticos Anónimos, em que estive 118 dias abstinente de qualquer tipo de substância e logo a seguir recaí. Não levei as coisas a sério. Eu ter vindo para a comunidade não foi logo uma opção minha. Foi a minha irmã e uma prima que me disseram que fazia sentido que eu pensasse num tratamento a sério porque o rumo que a minha vida estava a levar era prejudicial para toda a gente. Em primeiro lugar para mim e depois para a minha família também.
REDE SOCIAL- Contactou algum serviço de ajuda existente no concelho?
MANUEL– Nessa mesma altura , fui ao CAT de Alcabideche e tive uma reunião com uma assistente social e falamos na possibilidade de eu ser internado. Houve um dia em que me caiu completamente a ficha. Eu já só pensava em morrer, não pensava em viver. Sobrevivia. E tive um primeiro contacto com a Casa da Barragem em que estive com uma das terapeutas e que me explicou que isto era um programa de 1 ano a 18 meses. E aí, pensei em voltar atrás. Mas o desespero era tal, que na consulta seguinte a que fui, com uma psiquiatra, chorei bastante, pedi ajuda, disse que estava mal e que precisava deste tratamento. Desde que entrei aqui, abriu-se uma nova janela de esperança, abriram-se algumas relações profundas com pessoas que aqui estão dentro. Foi o primeiro passo para me sentir seguro, com os cuidados das pessoas que aqui estão.
REDE SOCIAL- Como foi lidar com o tratamento numa comunidade terapêutica como “A Barragem”?
MANUEL– Confrontei-me com emoções com que não estava habituado, nomeadamente , coisas que eu tenho vindo a trabalhar aqui. Tem a ver com sentimentos de culpa, a dificuldade que tive em gerir a morte do meu pai. Alguns temas de vida que estavam completamente camuflados pelos consumos. Aqui encontrei esperança, uma equipa técnica muito experiente, muito atenta , muito preocupada com cada pessoa que aqui está. Não desiste das pessoas, que as valoriza. Recuperei a parte funcional da minha vida, que tinha perdido desde que fiquei sem trabalhar.
REDE SOCIAL- Pode descrever como foi a adaptação a essa nova realidade?
MANUEL– Passei a ter tarefas diárias, coisas que tinha que fazer obrigatoriamente. Isto devolveu-me alguma imagem de capacidade a mim próprio. É uma parte muito importante da terapia, recuperar a parte funcional, que trabalha também a humildade de cada um. Dependendo do sítio onde se está colocado, todas as tarefas são importantes cá em casa. Para além disto, temos muito envolvimento em espaços terapêuticos : temos um mini grupo que é uma terapia feita num grupo mais restrito , onde nós partilhamos com um sentimento de segurança total com os nosso irmãos de terapia. Vim aqui encontrar regras que eu tinha perdido na minha vida: a arrumação, os horários, o chegar a horas às refeições, aos espaços terapêuticos, o não fumar antes do pequeno almoço. São regras estruturantes do nosso tratamento. Porque lá fora, fazemos tudo à nossa maneira e isso não estava a surtir efeito. Aqui vim recuperar tudo isso.
REDE SOCIAL- Em que fase é que está do tratamento?
MANUEL-Estou na segunda fase do tratamento. Sou neste momento o coordenador geral da casa. Tenho que articular com a equipa técnica tudo o que diz respeito aos residentes. Tenho uma função de muita responsabilidade, de atenção às pessoas, aos problemas de cada um, às dificuldades de cada um. Tenho que fazer com que a casa funcione: somos 30 e tal pessoas. É uma tarefa desafiante e eu gosto de desafios na vida e já não sentia isto há muito tempo.
REDE SOCIAL – Para quem esteja neste momento a atravessar um problema semelhante e que esteja com dúvidas como teve, de que estar uma ano numa comunidade terapêutica pode parecer muito tempo, que mensagem gostaria de deixar?
MANUEL– A mensagem que eu queria passar, é que nós merecemos muito mais do que o sofrimento em que as substâncias nos colocam. E que há alturas na vida, em que temos que investir em nós próprios. O tempo passa muito rápido aqui. Fazemos um trabalho de que colhemos frutos e sentimos melhorias. O que eu posso dizer é que vale a pena estar em tratamento, apostarmos em nós, baixarmos os braços e aceitar que precisamos de ajuda.